A convite da Retrato Filmes, participamos da cabine e da pré-estreia da versão remasterizada do clássico de David Lynch que volta aos cinemas dia 17 de abril, e estamos aqui para compartilhar um pouco dessa revisita cinematográfica. Afinal, será que o cinema de Lynch foi feito só para ser entendido?

Boas Vindas à Hollywood
Em Cidade dos Sonhos, somos apresentados a Betty, uma jovem e proeminente atriz, que viaja para Hollywood a fim de seguir o seu sonho, mas, repentinamente, se vê presa em uma intriga secreta com uma mulher que acabou de escapar de seu assassinato, e que agora se encontra com amnésia causada por um recente acidente.

A fim de ajudar essa misteriosa mulher, Betty começa a investigar as causas desse acidente. Mas, o que começa como um suspense noir acaba virando um mergulho distorcido sobre identidade, desejo e frustração.
A importância do espectador
Antecipadamente, indagamos que querer encaixar as obras do cineasta em um único conceito definido, é o mesmo que tirar as asas de uma borboleta, é remover o seu propósito. Como o próprio diretor respondeu ao ser perguntado sobre o que achava daqueles que diziam não ver sentido em seus trabalhos: “(…)Não importa realmente o que eu penso. Mesmo que todos os frames do filme sejam iguais, não há exibições idênticas. É o espectador, a imagem, o som, que fazem um círculo assim. Então, você apenas sente. É essa intuição, emoção e pensamento juntos que tomam um sentido para você(…)”. Os diretores não podem reter as explicações exatas de seus filmes a partir do momento que eles vão a público, pois o cinema é subjetivo e quem edifica a obra é, sobretudo, o espectador, através do conceito crucial na hora de se analisar uma película: a experiência com ela. Lynch é a prova disso. Portanto, leve a nossa visão apenas como uma dentre milhares que se pode ter acerca do filme, isso enriquecerá a sua experiência ao assisti-lo.

O roteiro e a fotografia
Ao nos inserir na cidade dos sonhos, Lynch usa e abusa de artimanhas que concederam essa imagem surrealista ao seu trabalho. Como por exemplo, o uso exacerbado de simbolismos e metáforas para contar a sua história; cores vibrantes e personagens dotados de uma aura excêntrica e misteriosa; cenários inquietantes em que se instaura um suspense repentino do iminente caos, com uma pitada de humor bem suave.
Pensando nisso, tomamos, por exemplo, a personagem de Betty (Naomi Watts), uma doce e meiga mulher, que esconde um segredo dentro de si trancado à chave. Rita (Laura Harring)? Uma mulher incomum com um passado um tanto caótico. E o diretor de cinema, Adam (Justin Theroux)? Um jovem inundado de fúria que não possui o direito nem de articular o seu próprio filme. Percebe como Lynch cria um amontoado de situações que parecem não ter conexão? Esse sentimentalismo que carece de explicações que torna Cidade dos Sonhos um filme único, abstrato e experimental.

As conversas mirabolantes entre as personas, é quase como um jogo de sedução, onde você não sabe exatamente sobre o que ou quem sua atenção está direcionada, porém, se mantém instigado a descobrir a resolução do caso. Mas como? Por que? O que está acontecendo? pensamentos como esses permeiam incessantemente as vagas ruas da Cidade dos Sonhos.
Perceba como a câmera do cineasta, ao invés de mostrar respostas óbvias, propõe várias vezes que olhemos com os olhos dos personagens o ambiente em que são inseridos, para que busquemos a nossa própria interpretação. Como dito antes, essa é só uma das assinaturas do diretor, gerando uma dissolução de ideias e conjecturas.

Além disso, temos um roteiro assinado pelo próprio Lynch, comprometido com sua própria visão. A não-linearidade da história e os parênteses que ele vai abrindo nas narrativas em paralelo, em primeiro momento se parecem mais com eventos aleatórios. Mas, apenas no decorrer do filme, quando temos todas as peças do quebra-cabeça em mãos, é que o diretor nos permite, não deixar o campo explicado, mas traçar a nossa própria linha do tempo, a nossa própria interpretação do que acabou de ocorrer.
Lynch é conceito, coesão e aclamação
O produtor Fred Caruso de Veludo Azul, uma outra obra prima de Lynch, relatou na biografia Espaço para Sonhar que existia uma aura de felicidade inexplicável quando o diretor entrava ao set. Segundo ele, era como se Lynch conseguisse fazer fluir tudo o que precisava para carregar a sua visão junto da equipe. Essa sensação é algo que transborda em todas as suas obras. Ele conduz não só a narrativa, mas a atmosfera inteira, e isso também é nítido em Cidade dos Sonhos.

Em suma, Cidade dos Sonhos é o tipo de filme que muda junto com quem o vê. No ano de seu lançamento, talvez ele parecesse apenas esquisito. Em 2025, ele se revela cada vez mais lúcido, cruel e emocional. A nova versão remasterizada não faz o trabalho de só resgatar um clássico, mas permite que ele respire em uma tela que faça jus à sua grandiosidade. Se é um sonho, eu não quero acordar. Se é um pesadelo, quero ver até onde vai.
Fonte: www.pippoca.com
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